‘Eu só queria privar o meu filho do sofrimento’

Mãe revela saga para tentar tirar travesti de 16 anos das ruas. Pai temia que Michelly nunca mais voltasse para casa. Quatro dias antes de morrer, ela disse que queria mudar de vida

Michelly mãe e irmãos Michelly, com a mãe e os irmãos: família não reprimia identidade sexual, mas temia por sua segurança (Foto: Álbum de Família)
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Patrícia com o filho Miguel
Patrícia com o filho Miguel, antes da mudança de gênero (Foto: Álbum de Família)
Patricia e Michelly
Patrícia e a filha Michelly, após a transformação (Foto: Álbum de família)

Luis Miguel Macedo Rodrigues – a travesti Michelly, de 16 anos, assassinada no último sábado (7), em Itaperuna (RJ) – nasceu na cidade do Noroeste Fluminense em 26 de abril de 2002 e iniciou seu processo de mudança de gênero aos 13 anos, quando ainda morava com a mãe em São Francisco de Itapaboana, litoral norte fluminense. Misturada à rebeldia típica da adolescência, a transição para a transexualidade se tornava potencialmente ainda mais complicada. Passou a enfrentar os limites impostos pela mãe, chegava de madrugada em casa, não queria saber de estudar.

“Comecei a segurar, apertar pro Miguel estudar. Levei pro neuro, pro psicólogo. Nada resolveu”, conta a mãe, Patrícia Macedo Rodrigues, 35 anos, que é professora. Foi nesta época também que Miguel, como todos sempre o chamaram, se converteu ao candomblé. Depois de muitos conflitos com a mãe por não querer aceitar as regras da casa e estudar, Miguel decidiu morar com o pai em Itaperuna. A mãe entrou em depressão. “Entreguei pra Deus e resolvi entrar em oração”, conta ela, que é muito católica.

Em Itaperuna, Miguel passou a sair de casa à noite ainda com mais frequência. Aos 14 anos, passou 15 ou 20 dias ‘matando aula’. Cada vez mais com suas atitudes, a mãe resolveu pedir ajuda do Ministério Público. Lá, conta Patrícia, a família foi orientada a não interferir nos novos hábitos de Miguel, pois isso poderia significar uma discriminação por conta da sua nova identidade sexual e até mesmo sua nova religião.
E foi assim que, em setembro de 2016, Miguel abandonou a escola, no sétimo ano do Ensino Fundamental. Patrícia não se conformava. No auge da adolescência e com os hormônios em transformação, o filho ainda não tinha ainda maturidade para entender a própria transexualidade. Sofria com isso, mas queria viver sua nova vida. Os pais, então, perderam o controle, a autoridade.
“Não havia preconceito da nossa parte. Nunca fomos contra a opção sexual dele. O que a gente queria era preservar o Miguel dos riscos. Não podia deixar meu filho à vontade na rua, fazendo o que bem entendesse, até altas horas da noite. Eu queria privar meu filho de sofrimento”, afirma a professora, muito emocionada. “O que a gente brigava com ele era por se envolver com drogas, se prostituir nas ruas, sem precisar disso. Ele não tinha necessidade, não passava fome, não faltava nada para ele, tanto na casa da mãe, quanto na casa do pai”,  completa o tio, Mauricio.

Nome social de Michelly veio em 2017

Em 2017, Miguel adotou o nome social de ‘Michelly Silveira’, passou a usar apenas roupas femininas e fez outro perfil de Facebook. Alta, magra, de cabelo comprido e liso, totalmente natural, chamava a atenção. Em casa e com amigos de infância e da vizinhança, ainda era chamado de Miguel, mas não se queixava. Também não pretendia fazer uma cirurgia de mudança de sexo.

Em janeiro deste ano, Michelly acabou embarcando sozinha num ônibus em Itaperuna e foi parar na Lapa, Rio de Janeiro. Numa noite, em revista por guardas municipais do programa Lapa Presente, foi detida junto com outros colegas. Portava maconha para consumo próprio e uma faca – segundo revelou aos pais, era um instrumento para se defender da violência que os travestis costumam sofrer nas ruas.

De volta a Itaperuna, apesar dos esforços da família para protegê-la, os programas se tornaram mais frequentes, mesmo sob acompanhamento permanente do Ministério Público. A rotina se intensificou e, em abril deste ano, quando completou 16, Michelly passou a se prostituir quase que diariamente. A rua passou a ser o seu mundo. Ali, Michelly tinha poder.

Mãe chegou a pedir acolhimento em instituição

Destemida com a coragem que a idade lhe impunha, ela liderava outras travestis. Sem ‘papas na língua’, Michelly não aceitava levar “calote” de cliente. Defendia seu território como se fosse o escritório do seu trabalho. E era. Exploração sexual de adolescente naquele submundo.

Michelly e irmã Mylenna

“A gente vinha lutando pra tentar tirar o Miguel das ruas. Todas as noites meu irmão (Maurício) saía à noite à procura dele, com medo de se envolver em confusão”, relembra a mãe. Muitas vezes Elcy Vicente de Souza, 37, o pai, ia até o ponto de prostituição para trazer Michelly de volta para casa. Temia que seu temperamento forte a colocasse em dificuldade ou risco. ‘

Com medo de “algo ruim” acontecer com Michelly, Patrícia chegou a pedir ajuda numa instituição para acolhimento de menores. “Preferia que ele estivesse recolhido em uma instituição a ficar solto nas ruas para ser morto”, afirma.

Família não reprimia nova identidade sexual

Sobre a aceitação da identidade sexual de Michelly, a mãe garante que entendia e apoiava. “Quando estava na minha casa, Miguel usava minhas roupas e a maquiagem da irmã, nunca fomos contra a opção sexual dele”, afirma Patrícia. O pai também não reprimia a identidade sexual do filho.

“Levava comigo para a loja para comprar roupas e as atendentes chegavam a achar que eu era namorado dele. Quando descobriam que eu era o pai, me davam parabéns”, conta. Elcy tentou inúmeras vezes convencê-lo a deixar as ruas, mas com medo de que Michelly saísse de vez de casa, procurava não discutir. “A gente conversava muito”.

Na terça-feira antes do crime, quando foi chamada na promotoria novamente, Michelly não quis ir, pensou em fugir, com vergonha. “Mas ele resolveu ir lá comigo e assumir os erros. Me disse que pretendia mudar, pediu que eu o matriculasse de novo no colégio. Disse que ia deixar essa vida, estava cansado”, revela o pai.

Michelly não teve tempo de voltar atrás. Na noite de sábado, enquanto trabalhava mais uma vez, com o mesmo macacão cinza com que fora fotografada em eventos com a família, ela foi surpreendida por dois homens de moto e abatida ao chão, com cinco tiros. “Foram todos de frente. Ele não correu”, conta o pai.

Ainda atordoada com o que aconteceu, Patrícia se lembra da última vez que falou com Michelly. “Mãe, eu te amo muito, tenho muito orgulho da senhora”, despedia-se, ao telefone, quatro dias antes de morrer. E é da coragem e docilidade de Michelly que os pais querem se lembrar agora, enquanto lutam juntos por Justiça.

‘Ele não escondia a verdade’: veja mais o depoimento da mãe

Michelly com a avó Ilda
Michelly com a avó Ilda (Foto: Álbum de Família)

“Ele era um menino que gostava de ficar quietinho, de ficar mexendo no celular, de ver vídeos, assistir televisão. Conversava muito com a gente dentro de casa, era carinhoso, só não gostava de ser cobrado, de regras, de limites. A palavra ‘não’ para ele frustrava muito. Mas também era um menino muito positivo, muito verdadeiro. Se fizesse alguma coisa de errado, não escondia a verdade, podia doer a quem quisesse doer, mas ele falava a verdade. Ele não escondia da gente. Tanto que na terça-feira ele me ligou e desabafou tudo o que estava fazendo.

Quando entrava em algum conflito, a gente tentava dar conselho, corrigir. Era aquele conflito extremo, quando terminava o conflito, daí a cinco minutos, ele já estava deitadinho no meu colo, abraçado comigo. Deitava nos braços do pai para assitir televisão, Na minha casa, deitava na minha cama e ficava. Gostava de ajudar todo mundo. Não podia ver ninguém em dificuldade que queria ajudar. Esta semana seria o aniversário de um ano da irmã e ele chamou a madrasta e falou que iria ajudar na festa. Nós sempre cuidamos dele e sempre demos muito amor e carinho, independente da opção dele, Quando nós corrgiamos era para privar ele de sofrimento, não preconceito pela opção dele.

Uma amiga dele me disse ontem que ele dizia para ela que me amava muito, que tinha muito  orgulho de mim. Que a vida dele era eu. E no dia que se despediu de mim, ele me disse que me amava muito, que se orgulhava de mim. E o pai era o herói, o protetor dele”, diz, em prantos. A ligação com a família também era forte. “Ele também se espelhava muito na irmã, achava linda e muito boa, tinha muito orgulho dela também. E a avó Ilda era o chamego dele, a Ildinha, a velhinha dele. Ultimamente estava vindo pouco aqui, mas quando me ligava não ficava sem perguntar pela irmã, pelo irmão e pela avó, tinha loucura pela avó”.

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